Em ‘O rastro da onça’, antropólogo Felipe Süssekind explora as relações entre ecologia, caça, criação de gado e turismo na região do Pantanal
18-10-2014 por Bolívar Torres, O'Globo, Brasil
RIO — Desde o final dos anos 1970, quando surgiram as primeiras pesquisas de campo voltadas para a vida natural, a onça vem sendo a espécie que atraiu o maior número de projetos de preservação no país. Para o antropólogo Felipe Süssekind, contudo, mais do que um símbolo de conservação, o animal é a personificação do que entendemos por “selvagem”; importante dentro da mitologia e na arte dos povos nativos, sua existência parece guardar segredos, remetendo a tudo aquilo que de alguma forma está fora da esfera conhecida. A complexa relação entre homem e fera, com suas intersecções culturais, comerciais e ecológicas, está no centro do recém-lançado “O rastro da onça — Relações entre humanos e animais no Pantanal” (7Letras, 203 páginas, R$ 39). No livro, Süssekind examina a rede de trocas entre os diferentes agentes — vaqueiros, caçadores, biólogos, onças, vacas e cães de caça — das zonas de preservação do Pantanal. Ao analisar a reciprocidade de olhares entre humanos e não humanos, oferece um contraponto à constituição do animal como um mero objeto: a onça deixa de ser um simples item na coleção de história natural para habitar um mundo.
Por que a opção pela onça pintada?
Quando eu estava cursando o doutorado em antropologia no Museu Nacional (UFRJ), tomei conhecimento de alguns projetos de conservaçãp, na região do Pantanal, que me chamaram atenção porque estavam sendo realizados dentro de fazendas, lugares habitados por pessoas, e não em locais como parques ou reservas naturais, idealmente isolados da presença humana. Havia aí uma interseção interessante entre fatores ecológicos e fatores culturais. Eu queria trabalhar com relações entre humanos e animais, e as relações entre onças, gado, vaqueiros e projetos científicos me pareceram propícias para uma pesquisa antropológica.
Ao contrário da antropologia clássica, que estuda apenas os seres humanos, o seu livro busca também uma "antropologia animal". Como definiria esse desafio?
Nos últimos trinta anos, aproximadamente, surgiram múltiplos questionamentos da divisão entre humanos e humanos imposta pelo pensamento científico e filosófico tradicional. Esses questionamentos implicaram a reconsideração da atribuição prematura do protagonismo das relações ao ser humano. Muitas vozes na filosofia contemporânea, na antropologia, na biologia, precisaram encontrar ideias novas para lidar com a questão do animal. O conceito de devir animal, formulado por Deleuze e Guattari, a ideia do animot, formulada por Derrida, são alguns exemplos de como essa questão despertou a necessidade de novos repertórios conceituais que colocaram em xeque muitos dos valores estabelecidos pela tradição. Surgiram a partir daí novas perspectivas interessantíssimas sobre as relações que se constituem entre humanos e animais. Uma referência fundamental nesse campo, atualmente, é o trabalho de Donna Haraway, que mostra como somos constituídos pelas relações que tecemos com o que ela chamou de “espécies de companhia”. Essas são algumas das influências para o que tem sido chamado de etnografias multi-espécies, trabalhos que descrevem redes de relações nas quais os animais são focos de agência, e não apenas objetos ou repositórios de projeções humanas. A antropologia sempre falou de relações com animais, mas talvez agora experimente uma mudança que tem a ver com o questionamento da grande divisão entre natureza e cultura que marcou sua origem, com a delimitação daquilo mesmo que constitui seu objeto como uma ciência do humano.
Qual a importância da troca de olhares na relação entre humanos e onças?
(O crítico de arte inglês) John Berger observou que os zoológicos são um monumento ao desaparecimento dos animais da vida urbana moderna. Um lugar onde podemos olhar para os animais, mas onde é impossível encontrar o olhar de um animal. O interesse pelo olhar dos animais, nesse sentido, é a procura por uma relação que está se perdendo. Não só as espécies estão desaparecendo em um ritmo alucinante, mas também as experiências, sentimentos, modos de relação, tudo isso está em vias de extinção junto com elas. O interesse pelo olhar é um interesse pela alteridade, pelos mundos próprios que se constituem para cada espécie, o mundo que surge da percepção singular de cada um dos seres. No caso da onça, Guimarães Rosa escreveu uma novela fantástica chamada “Meu tio, o iarauetê”, que nos convida a experimentar o ponto-de-vista da onça, habitar um corpo onça. A literatura é capaz de evocar essa experiência, que a filosofia de alguma forma tende a excluir. Além disso, é muito forte entre aqueles que dividem o espaço com as onças, como os moradores do Pantanal, a sensação de se estar sendo observado. As onças muito raramente se deixam ver, são animais que estão a espreita, predadores. Trata-se, nesse caso, de um olhar que remete a um sentimento muito primitivo, talvez, de que somos presas em potencial. Acho que isso é um aspecto muito forte que marca os lugares onde as onças habitam, a compreensão corporal de que estamos inseridos nesse jogo de olhares ligado à caça, à predação.
O que a maneira como olhamos os animais diz sobre nós?
O animal foi definido na filosofia ocidental como uma espécie de humano genérico, um ser que está excluído daquilo que se considera como sendo a singularidade humana – razão, linguagem, consciência, ou seja qual for o critério –, e isso repercute no nosso olhar. Os animais são considerados objetos para os sujeitos humanos, são definidos em termos de valores utilitários, e não de valores intrínsecos. Não somos mais capazes de reconhecer neles a presença de uma alteridade significativa, vemos apenas reflexos de nós mesmos. Acho que isso diz muito a respeito do nosso mundo, e diz muito também a respeito da crise ambiental em que nos encontramos, que tem raízes na formulação do domínio humano sobre os outros seres, na concepção da natureza como recurso para a empresa civilizatória humana. Nosso olhar para os animais é marcado por ideais de dominação, domesticação, e por isso raramente nos torna capazes de lidar com as possibilidades e segredos que eles nos apresentam, ou de entendermos a nós mesmos como seres vivos inseridos em redes de relações que nos ultrapassam.
Você diz que as semelhanças entre as antigas imagens de caça e as imagens de pesquisadores dedicados à preservação se reunindo em torno de onças anestesiadas se tornaram um elemento central na sua pesquisa. Por quê?
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Quanto mais protegemos os animais, mais nos afastamos deles?
Para as pessoas que compartilham seu espaço de vida com animais como a onça, é preciso respeito, cautela, a onça é um animal fascinante e ameaçador ao mesmo tempo. O problema é que as vezes os filmes, ou matérias, que tratam dessa temática, recorrem a uma visão estereotipada tanto dos animais quanto das populações que convivem com eles. Isso cria um afastamento ao invés de nos lançar no problema. O modo como a preservação é formulada tende muitas vezes a acentuar uma separação entre o mundo natural, habitado pelas onças, e o mundo em que nós humanos habitamos. Para conservar a onça, dizem, temos que criar áreas naturais intocáveis, das quais nós humanos estamos excluídos. Nesse sentido, a preservação seria um corte, como se a única forma de coexistirmos com esses animais fosse que não tivéssemos mais nenhuma relação com eles. O ecoturismo, que é uma alternativa importante no Pantanal para a conservação, nos permite observar os animais em vida livre. Mas o modo como isso se dá, todo o aparato que se interpõe entre os animais e aqueles que os observam – caminhonetes, câmeras, holofotes, guias – é um dispositivo que nos coloca na posição de sujeitos e aos animais na condição de objetos. O fato de que os animais são capazes de nos olhar tende a se perder nessa relação.
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