As onças cativas do Brasil
04-10-2014 Juliana Arini, Planeta Sustentavel
O crescimento das cidades e da fronteira agrícola alimentam um silencioso conflito no Brasil: a proximidade cada vez maior dos grandes felinos com as áreas urbanas. Em menos de três meses uma onça-pintada foi filmada nas ruas de Corumbá e uma onça-parda invadiu uma residência em Campo Grande, ambos os casos no Mato Grosso-do-Sul. Outra onça-parda
(usando uma coleira) foi resgatada de cima de uma árvore, em Chapecó,
em Santa Catarina, e em Goiás, um pedreiro foi surpreendido por um
grande felino nos escombros de uma obra. Há uma semana, um filhote foi
recolhido após vagar pela rodovia BR-040, no entorno do Distrito
Federal. Qual será o destino de todos esses felinos selvagens que
ousaram invadir as cidades?
Faminto e abatido, o filhote de onça-parda é entre
todos, o que possuí menos chances de conseguir voltar para o seu
habitat. “A onça, seja das espécies parda ou pintada, é um animal que
precisa conviver com a mãe para aprender a caçar e a sobreviver”, afirma
Ronaldo Morato, coordenador do Centro Nacional de Pesquisa e
Conservação de Mamíferos Carnívoros (Cenap), do Icmbio.
“Quando recolhidos muito filhotes, esses animais dificilmente
sobrevivem livres na natureza”, diz. O destino mais provável da pequena
onça-parda pode ser duas décadas de confinamento, o tempo médio da vida deste felino em cativeiro.
Com sorte, a pequena suçuarana, como também são conhecidas as onças-pardas, será encaminhada para um criadouro com recinto adequado. Até lá, ficará em algum Centro de Triagem de Animais Silvestres (Cetas)
– empreendimentos autorizados pelo Ibama para receber, identificar,
marcar, triar, avaliar, recuperar, reabilitar e destinar animais
silvestres provenientes de fiscalização, resgate ou entrega voluntária
de particulares. Por seu caráter provisório, nem sempre os Cetas
conseguem ser o melhor abrigo em longo prazo.
“Eu comecei o meu criadouro por causa de uma onça-pintada
que vivia em uma pequena jaula de um Ceta. O animal veio de um
zoológico municipal, onde ficou anos sem alimento e assistência
veterinária adequados. Ele mal andava”, diz Luciano Saboia, proprietário
do Criadouro Onça-pintada, onde mantém mais de 2,2 mil
animais silvestres de 198 espécies, no Paraná. “Acabei criando um
criadouro legalizado para receber essa onça e lhe dar um recinto digno
para viver. De lá pra cá, ajudar os animais virou uma missão de vida”.
Saboia e a esposa Cristiane – ambos médicos oncologistas – investem
recursos próprios para manterem os animais em um área de 132 hectares.
Além de 12 onças (seis pintadas e seis pardas), eles trabalham com a reprodução e reintrodução na natureza de animais que já foram extintos em algumas regiões do país, como as aves mutum-do-sudeste e o cardeal-amarelo. Porém, nunca executaram esse tipo de ação com onças.
“É um trabalho custoso e há pouco apoio do governo e das empresas
para quem lida com os animais silvestres. Eu basicamente invisto
recursos próprios em tudo. Para fazer a reabilitação das onças para
viverem na natureza, eu precisaria de mais estrutura. Apesar de saber
que em países como Guatemala e Costa Rica eles estão tendo muito sucesso
nesse tipo de ação com onças-pintadas em áreas onde elas antes estavam extintas”, explica.
Mas, nem tudo está perdido para os filhotes de onça no Brasil. O Projeto Abayomi,
que atua em Campinas, em São Paulo, é o primeiro passo para tentar
ajudar esses animais. A iniciativa surgiu por causa de três filhotes
órfãs de onça-parda, nascidos na natureza e separados brutalmente de
suas mães por imprudência e despreparo das equipes de resgate.
Raquel, um dos três filhotes, poderá ser a primeira parda criada em cativeiro a ser reabilitada a viver livre na natureza. Além de buscar liberdade para os filhotes, o projeto atua na criação de um corredor ecológico que possibilite o retorno das onças-pardas para as matas da região.
O mais difícil é reeducar o homem a presença das
onças. “Primeiro, estamos trabalhando nas regiões de plantio da
cana-de-açúcar. Com a proibição gradativa da queima do bagaço
pós-colheita, os casos de filhotes retirados indevidamente dos ninhos
aumentou”, afirma Márcia Gonçalves, coordenadora do projeto e analista
ambiental do Icmbio. “Nossa meta é conscientizar os
fazendeiros e funcionários das áreas de plantio a não mexerem nos
filhotes, pois as mães tendem sempre a retornar para buscá-los. Basta
isolar a área por um tempo”.
Outra ação do projeto é tentar convencer a população que o retorno das onças-pardas é algo benéfico. “O desaparecimento desses felinos desencadeou um grande desequilíbrio ambiental, com efeitos como uma superpopulação de capivaras – o principal alimento das onças. Hoje, muitas desses roedores estão contaminadas com febre-maculosa”, explica Marcia. A zoonose é transmitida aos seres humanos pela picada do carrapato-estrela. A doença causa febre, necroses das extremidades e nos casos mais graves leva à morte.
Infelizmente, o projeto não atua com onças-pintadas, apenas com pardas. A readaptação das onças-pintadas
foi testada apenas uma vez no Brasil, na região Centro-Oeste. Mas, como
as onças-pintadas não temem tanto o homem quanto as pardas, os felinos
acabaram entrando em áreas de fazenda, o que fez com que precisassem
serem recapturados.
As dificuldades aumentai para os animais adultos e há anos
acostumados com a presença humana. Nesses casos só há um destino: a vida
em cativeiro. Nesses casos, manter os animais menos selvagens
é uma opção para proporcionar mais qualidade de vida para estes. “Se
você tem um bicho que não tem possiblidade de voltar para a natureza, a
melhor forma de lidar com ele é mantê-lo mais acostumado ao contato
humano”, explica Gilberto Miranda, especialista em
comportamento animal, que também cria felinos (no caso tigres). Isso não
significa que as onças devam virar uma espécie de “pet”. A medida tem a
finalidade apenas de evitar que seja necessário fazer o uso constante
de tranquilizantes nos momentos de contato com veterinários e medicação.
“Por mais manso que esses felinos pareçam, as regras básicas de manejo
devem permanecer. Eu nunca entro no recinto sozinho, por exemplo”,
afirma Miranda.
Enquanto as onças sofrem com as consequências do indesejado contato
com as cidades e o avanço da fronteira agrícola, e a reintrodução de
filhotes na natureza (ainda) é uma solução em teste, manter grandes áreas intocadas continua a ser a medida mais eficaz de preservação dos grandes felinos.
“Para se garantir o futuro das onças, o mais importante é
matermos ambientes naturais inalterados e com pouquíssimo contato com a
civilização”, diz Douglas Trent, coordenador de pesquisa do Projeto Bichos do Pantanal, que
atua no Pantanal de Cáceres, no Mato Grosso. “Se as cidades e fazendas
continuarem a se expandir descontroladamente, é possível que em 50 anos,
o Pantanal esteja entre as poucas áreas possíveis de garantir a
manutenção de grandes populações de onças-pintadas no mundo. Esse é mais
um motivo para lutarmos pela preservação dessa região”, conclui.
Fotos:
Douglas Trent/Projeto Bichos do Pantanal
Criadouro Onça-pintada
Projeto Aboayomi
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